João Gilberto tinha 24 anos e passava por uma má fase. Naquele final de verão de 1955, estava sem casa, sem trabalho, quase sem amigos e se arrastava desgostoso pelas ruas do Rio, onde vivia. Era um joão-ninguém. “O orgulho flechado por todos os lados fizera sua autoestima despencar a zero”, descreveria Ruy Castro no livro “Chega de saudade; a História e as histórias da bossa nova”, de 1990. Um dos poucos próximos era o músico gaúcho Luis Telles, do conjunto Quitandinha Serenaders, que levou Joãozinho, como era chamado, a passar uma temporada em Porto Alegre. Hospedou-o no melhor hotel da cidade, o Majestic (onde hoje funciona a Casa de Cultura Mário Quintana), e pediu que se concentrasse no violão.
Nem precisava. João arranjou um sobretudo emprestado, circulou pela noite, flertou com as moças da Confeitaria Central. Mas também tomou aulas de piano, participou de serestas no Clube da Chave, onde bebeu muito steinhäger acompanhando carreteiro de linguiça (algumas vezes, sem pagar a conta). Chegou a fazer um pequeno show na Rádio Gaúcha, onde foi apresentando como “um cantor baiano recém-chegado do Rio”. Não largava o violão, que dedilhava copiosamente. Até hoje há um ou outro morador que se lembra de tê-lo visto dando canja nalgum botequim. Na temporada gaúcha, que durou até o inverno daquele ano, João foi adotado pela família de um dos novos amigos. A matriarca, a jornalista e escritora Boneca Regina, acolheu-o como um filho.
— Lembro até hoje, tenho muito boas memórias daquele tempo em que ele ficava horas na cozinha de casa tocando violão... — recorda-se a professora Maria de Lourdes Pederneiras, neta de Boneca Regina, que era criança à época. — Joãozinho dizia que era a melhor acústica do apartamento. Era um violão emprestado, ele não tinha instrumento. Até que fizemos uma vaquinha e compramos um para ele. Estou curiosíssima para ouvir a gravação novamente, nem lembrava que ela existia...
A gravação da qual fala Maria de Lourdes é mais uma pepita do acervo do radialista gaúcho Vanderlei Malta da Cunha, que tem guardadas há quase 50 anos centenas de documentos históricos da música popular brasileira, como O GLOBO revelou em série de reportagens que se encerra hoje. Em 1961, portanto três anos depois de estourar com “Chega de saudade”, o já consagrado João Gilberto voltaria à capital gaúcha para fazer um show e visitar os velhos amigos que o acolheram anos antes. Recém-casado, levou consigo a mulher, Astrud Gilberto. Em visita à família de Boneca Regina, com a casa cheia, João puxou o violão e cantarolou três músicas para os presentes: “Canta, canta mais”, “Sem você” (ambas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes) e, como havia crianças pela sala, entoou a cantiga de ninar “Acalanto”, música que Dorival Caymmi compôs quando a filha, Nana, nasceu. Ao final desta, comentou: “Como é que se faz uma música como essa! Nossa senhora...!”
“ESTÁ GRAVANDO?”
Um pocket-show de luxo, portanto. Muito à vontade, João comentou as canções, contou causos, imitou o jeito repetitivo de falar de um amigo. Em certo momento, um cuco interrompe seu canto baixo, e nota-se que uma das pessoas breca o passarinho com as mãos, para evitar novo ruído. É quando ele percebe que está tarde, e que já deu sua hora. Ameaça ir embora, mas, antes de sair, esboça nova canção ao violão. Descontraído, faz apenas uma brincadeira com os nomes dos presentes, cantando: “Betinho vai dormir, Soninha também, Dona Dalva também... Dona Boneca também... Carmem também... Iara também... Neném também (era como chamava Maria de Lourdes)... Astrud também”. A certa altura, percebe um deles manusear um gravador e pergunta: “Está gravando?”
Estava. Havia alguém naquela sala que tinha um gravador de rolo e um bom naco de perspicácia. Malu já não se lembra quem, nem por que, mas aquela fita com 15 minutos de gravação seria guardada como uma relíquia.
— Eu conhecia Boneca Regina, era uma figura muito querida na cidade — conta Vanderlei. — Em 1968, fiz um programa especial na rádio para comemorar os dez anos da bossa nova e lembrei que ela já tinha comentado comigo a existência de uma fitinha caseira de João tocando. Ela me emprestou para que eu usasse um trechinho no programa “Domingo & arte”. Eu usei, mas fiz uma cópia do material bruto, por segurança.
Foi a sorte. Com a morte de Boneca Regina, em 1994, aos 86 anos, não se sabe o paradeiro do material original. O que existe é a cópia feita pelo radialista.
— Estive com Boneca Regina inúmeras vezes e posso dizer que ela também me adotou como um filho quando comecei a pesquisar esta temporada gaúcha de João para o livro “Chega de saudade”. Era uma figura adorável. No entanto, nunca comentou a existência dessa gravação. É mesmo uma raridade — comentou o escritor Ruy Castro, que recebeu a gravação do GLOBO com os olhos brilhando, numa audição improvisada num quiosque da Praia do Arpoador, na sexta-feira de manhã. — É curioso observar como João, ao tocar e cantar informalmente, escolhe só samba-canção, e não o repertório clássico da bossa nova. Isso mostra como ele estava atento à música em geral. Ele jamais gravou qualquer uma dessas três canções. Também nunca assoviou desta forma numa gravação... Nessa sala, ele fez tudo o que não faz à frente de um microfone.
O jornalista e escritor João Máximo examinou os 14 minutos e 36 segundos do áudio:
— A descontração e o bom humor deixam claro que o João Gilberto que visitava Porto Alegre em 1960 era outro homem em relação ao que lá estivera cinco anos antes. Em 1955, ele estava no fundo do poço, desempregado, deprimido, sem perspectivas numa carreira musical que, até então, só ele levava a sério. Agora, a voz e o violão que soavam na residência de amigos gaúchos eram de um artista que, dois anos antes, com “Chega de saudade”, começava a reinventar a música brasileira com seu canto e sua batida de violão. Tanto o canto como a batida foram registrados nas três canções: “Canta, canta mais”, “Sem você” e “Acalanto”. Na primeira, João assobia as variações orquestradas por Leo Peracchi para a gravação original de Lenita Bruno, mulher do maestro. Na segunda, as variações são dele mesmo, João. Um João Gilberto como nunca mais se teria registrado, em som ou imagem, diverte os presentes contando alguns casos.
Apesar dos ruídos e da conversa paralela, que impedem a clareza da audição, o jornalista conseguiu decifrar o papo:
— Um dos casos era sobre a pontualidade de Severino Filho, líder dos Cariocas, e seu jeito repetitivo e tergiversado de falar. Em outro momento, alguém na sala pediu para que ele contasse “a briga com Tito Madi”, mas pelo menos no que está gravado, o pedido não foi atendido. João limitou-se a atribuir o episódio, ou o tanto que se falou dele, a um vago “complô da mediocridade”. A verdade: a briga terminou com um golpe de violão de João na cabeça de Tito (a briga ocorreu por causa de um pedido de silêncio não atendido num evento em São Paulo, no mesmo ano; João golpeou a cabeça de seu ídolo, que levou dez pontos e rompeu relações por 47 anos).
Publicada originalmente em 24 de maio de 2015
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